Mágica acontece pra quem acredita


Aquele dia se iniciou como outro qualquer. O despertador não tocou. De novo. O que me faz pensar se o problema sou eu – que não o escuto tocar-, ou se a máquina está realmente quebrada. Preciso encontrar tempo para descobrir isso. Tempo, infelizmente, é o que anda me faltando. Junto com dinheiro. E algumas risadas. E... Ok, a lista é longa.

Quando finalmente consegui abri os olhos, vi a hora no relógio e pulei da cama. No meu alvoroço para levantar, não percebi que o lençol se enrolara nas pernas numa armadilha mortal, da qual, é claro, fui vítima. Aterrisei de cara no chão, resmungando, enquanto meu cachorro saltava sobre minhas costas achando que era algum tipo de brincadeira nova. Ótima maneira de começar o dia.

Depois de me livrar do cachorro, corri para o banheiro e tomei um dos banhos mais rápidos da minha vida. Não gosto de chegar atrasado. Me atrasei uma vez, meses atrás, e meu chefe me olhou como se eu fosse um parasita, além de me dar uma bronca que faria o sermão da montanha parecer fichinha. Peguei um dos ternos do armário, que havia comprado na tentativa de me adequar ao mundo profissional. Eu sou um profissional. PROFISSIONAL. Ok, se repetir o bastante, creio que me convencerei disso.

 Desisti de tomar café da manhã, já que poderia comer algo no caminho. Na porta, abaixei para pegar o jornal no capacho, e percebi que usava uma meia preta e uma marrom. Droga. Vou ter que ir assim mesmo. Dei uma olhada vapt-vupt no jornal e rasguei a página de palavras-cruzadas, colocando-a no bolso para fazer no metrô. Já tinha trancado a porta quando me dei conta que esqueci os formulários sobre os quais trabalhara na noite anterior. Droga. Droga. Droga.

Na estação de metrô, minha cara de desânimo não podia ser maior, enquanto esperava que o meu metrô chegasse para me levar para a tentativa de assassinato via tédio do dia. Digo, para o meu local de trabalho. O céu estava cinzento, como sempre, mas não parecia que ia chover. Ainda bem, porque os formulários precisavam chegar secos a seu destino. Eu pedia mentalmente para que São Pedro não me sacaneasse quando fui atingido por uma folha de papel.

Talvez, decidindo que eu não era um bom ponto pra se fixar, a folha continuou voando, sendo seguida, para minha surpresa, por uma linda jovem aparentemente desesperada. Não consegui evitar ficar olhando, embora tenha desviado o rosto quando a garota voltou para perto de mim, colocando a folha dentro de uma pasta. Dei um sorriso idiota em resposta ao sorriso sem-graça dela, enquanto a mão que não segurava os formulários ganhava vida e subia, descia, abria e fechava sem parar, com trejeitos que demonstravam meu nervosismo – e a minha timidez. Pensava em algo inteligente para dizer quando um trem chegou na estação, e minha falta de sorte se fez, mais uma vez, notar.

Um dos meus formulários voou de meus braços, caindo, na falta de um lugar pior, bem no meio da cara da garota linda. Me apressei a pegar o papel de volta, com um pedido de desculpas nos olhos, que esperava que ela compreendesse, já que minha boca se recusava a pronunciar uma palavra que fosse. Senti o coração bater acelerado no peito, enquanto a olhava estupidamente. Droga de timidez. Ela me deu um sorriso doce e, em seguida, uma risadinha. Não entendi a razão da risada. Olhei rapidamente para o terno, para ver se não tinha nenhum botão na casa errada ou se não colocara, outra vez, a gravata do Pato Donald que ganhei de meus sobrinhos. Não, tudo ok. Só restava o papel. Olhei para ele, e caí na risada, apontando como um bocó para o lugar onde os lábios dela deixaram um beijo. Me dei conta, em seguida, que estava interagindo com o vazio. Ela entrou no metrô, que fechou as portas às suas costas. Fiquei parado, com o formulário e o primeiro beijo que recebia em anos nas mãos, vendo-a partir. Ela olhou para trás, e esbocei um sorriso em despedida.

Peguei o trem seguinte pensando no quanto gostaria de ter dito algo, qualquer coisa, que me desse a chance de vê-la novamente. Algo melhor que “o formulário fez o que eu queria ter feito, baby”, que meu cérebro insistia em formular. Ainda pensava nisso, olhando desanimado para o beijo no papel, quando meu chefe, estraga-prazeres, soltou uma pilha de formulários em branco sobre a minha mesa – como se os que eu já tinha não fossem suficientes para me ocupar pelo próximo milênio. Olhei da pilha para a cara feia dele, enquanto desejava que engolisse os papéis e se engasgasse com eles.

Conjeturava que pelo menos ele engordaria se comesse as malditas folhas, quando um vento surgiu não sei de onde e levou justamente o formulário com o meu beijo embora. Me estiquei todo na direção da janela e impedi que fugisse no último instante. Suspirei aliviado, quando vi algo que me fez colar a cara no vidro e largar sem cuidado o que segundos antes me esforçara tanto pra salvar. ELA. No prédio em frente ao meu, do outro lado da rua, cumprimentando alguém e se sentando bem na frente à janela. Que sorte! 

Senti o coração bater acelerado enquanto pensava no que fazer. Minhas mãos outra vez ganharam vida própria, enquanto meu cérebro trabalhava furiosamente em encontrar uma maneira de chamar a atenção dela. Num primeiro momento, achei que, se acenasse, ela me veria. Abri a janela por inteiro e fiquei balançando os braços por vários segundos, até perceber que meu chefe me olhava feio. Voltei a me sentar, sem conseguir desviar os olhos de onde ela estava.

Olhei de relance pra mesa e vi o formulário marcado com o beijo me encarar de volta. Uma ideia genial – e um tanto quanto desesperada – surgiu na minha mente. Peguei o primeiro formulário da pilha e, usando todos os meus conhecimentos de anos de brincadeiras infantis, fiz um aviãozinho de papel em dois tempos. Sentindo o coração bater como um tambor, respirei fundo e levei minha obra de arte para a janela. Cheio de expectativa, joguei-o, e ele caiu... no meio do trânsito, lá embaixo, não chegando nem perto dela.

Determinado, peguei outro formulário da pilha, fiz outro aviãozinho e arremessei-o. Ele planou na direção dela, e eu já preparava meu melhor sorriso quando ele bateu na parede e caiu lá embaixo. Não perdi tempo, e fiz outro. Estava pronto para jogá-lo pela janela quando uma mão pesada pousou no meu ombro e me fez perder dez anos de vida com o susto. Era o cara-de-quem-chupou-limão do meu chefe, que fechou a janela com um safanão.

Ele ficou me olhando feio, enquanto voltava para sua sala e batia a porta com violência. Esperei que sumisse de vista e comecei imediatamente a fazer outro aviãozinho. Não, eu não estava pensando no emprego. Posso dizer que nem estava raciocinando direito. Tudo o que sabia era que precisava chamar a atenção dela. Não me pergunte porquê. O avião planou e aterrissou uma janela abaixo da desejada, na mesa de um gorducho que amassou minha obra-prima da aviação quando fiz sinais desesperados para indicar que o destinatário não era ele.

Ao longo de quase uma hora, fiquei fazendo aviãozinhos de papel sem cessar, puxando folhas e folhas da minha pilha de serviço a fazer, vendo os depositários da minha esperança caírem na lixeira, no chão, nas janelas vizinhas, baterem em pombos (!) e esbarrarem sem cessar na maldita parede. Cheguei a bater a cabeça na parede do escritório, de pura frustração. Mas continuei tentando, até que a grade de papéis da minha mesa caiu no chão.

Vazia.

O barulho soou como um tiro, na sala silenciosa como um cemitério. Olhei ao redor, percebendo que meus colegas de trabalho me olhavam como se eu tivesse enlouquecido. Não posso culpá-los. Ao voltar a olhar pela janela, percebi que ela se levantara para sair. O beijo na folha ousou levitar, serelepe, em direção à dona, sendo impedido pela minha mão. Olhei pra ele, e vendo que ela ia sair da sala – e da minha vida! – tomei uma decisão desesperada. Usei o formulário com o beijo, meu último recurso, minha última esperança. Fiz o aviãozinho e o segurei determinado em frente à janela, me sentindo como um soldado perante a última batalha.

Mas parecia que eu perderia a guerra.  Me descuidei, e uma massa de vento vinda sei lá de onde fez o avião escorregar das minhas mãos antes que pudesse fazer força para impulsioná-lo. Tentei pegá-lo, mas caiu em direção ao trânsito, levando o beijo dela – e as minhas esperanças – consigo.

É claro que meu chefe escolheu aquele exato momento para dar as caras na sala. Olhei mais uma vez para a janela, e vendo que ela saia do edifício, decidi descer e encontrá-la. Não sabia o que diria, mas precisava tentar. Ao me virar, dei de cara com o meu chefe, com uma cara mais azeda que o habitual. O susto me levou mais vinte anos de vida. Nesse ritmo, não viveria para conhecer meus netos.

Ele segurava outra pilha de papéis nas mãos e soltou-a, novamente, na minha mesa. Fiquei olhando desanimado para as folhas, pensando que assim se encerrava a minha oportunidade de encontrá-la. Então, pensei, dane-se! Eu nem gosto desse trabalho! Odeio meu chefe e abomino meus colegas, que parecem clones, com seus óculos, suspensórios, cabelos rareando no alto da cabeça e expressão permanentemente sisuda. Eles nem riem das minhas piadas! E eu nem sou tão ruim assim contando-as. As pessoas dão risada... na maioria das vezes. Disparei como um vendaval em direção à porta, arrastando os formulários às minhas costas como folhas ao vento.

Não esperei o elevador, desci correndo as escadas como se a minha vida dependesse disso. Atravessei a rua como um louco, sem prestar atenção nos carros, enquanto procurava, no meio das pessoas que passavam, aquela que fizera meu coração querer voltar das longas férias que havia tirado. Notei o aviãozinho com o beijo, minha última tentativa malograda, parado sobre uma caixa de correios, balançando levemente, como se zombasse da minha cara. Chateado, peguei-o e arremessei-o numa direção qualquer, querendo tirá-lo das minhas vistas.

Sentindo raiva de minha própria estupidez, caminhei, curvado pela fúria, sem um destino específico em mente. Não valia a pena voltar para o trabalho. Com certeza, os correios me trariam uma carta de demissão amanhã – e sem nenhuma referência. Foi então que o avião com o beijo surgiu sabe-se lá de onde, e se colou no meu tornozelo. Peguei-o e joguei pra trás, querendo me livrar das lembranças, mas, em seguida, ele e mais meia dúzia de aviãozinhos colaram-se no meu peito.

“Que diabos?”, pensei, antes de espaná-los do meu terno. No mesmo instante, os aviões voltaram a se colar e me empurraram para trás. Parece inacreditável, eu sei, mas é como se tivessem vida própria. Uma enxurrada de aviãozinhos envolvia o meu corpo e me levava pra Deus sabe lá onde. Enlouqueci de vez, concluí.

Atravessei a rua praticamente rolando e fui arrastado até a estação de metrô. Lutar contra os papéis era inútil. Mas não desisti, fazendo uma série de tentativas malogradas, de me agarrar em pilastras a me segurar nas portas do vagão. Me vi forçado a ficar sentado num banco, ao lado de um menino segurando um balão tão vermelho quanto o do beijo depositado no formulário. Meu mau humor não tinha limites.



Fui forçado a sair do metrô na mesma estação em que encontrei a garota do beijo mais cedo. O vento levou uma parte dos aviãozinhos, me permitindo ver o que tinha na minha frente. E, para minha surpresa, lá estava ela. Avancei sem pensar, sentindo os demais aviãozinhos caírem todos de uma vez, inertes, como se o sopro de vida que até então os animara subitamente os abandonasse. Ela segurava o formulário beijado nas mãos, e me sorriu, enquanto aninhava uma mecha atrás da orelha. Senti meu coração dançar uma dança esquisita dentro do meu peito. Não podia ser vergonha. Não podia ser medo. Não, eu sabia bem o que era. Ele havia voltado, finalmente, das suas férias. 



*Texto criado para a disciplina Oficina de Texto, do curso de Jornalismo da UFPE.

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